Em comemoração ao dia do Arqueólogo, dia 26 de julho de 2020, convidamos o Doutor Juan Manuel Cano Sanchiz, professor no Institute for Cultural Heritage and History of Science & Technology, University of Science and Technology Beijing, China, e membro da equipe Memória Ferroviária a comentar sobre a atuação do arqueólogo e a ação deste na área patrimonial.
De início, definiu-se o que é arqueologia e suas diferentes tipologias:
“A arqueologia é uma disciplina que tem se expandido muito nas últimas décadas, de forma que as frentes nas quais se pode atuar são múltiplas dos pontos de vista cronológico, temático, metodológico, teórico e social. A arqueologia pode operar tanto em passados distantes quanto próximos, inclusive no presente. Pode estudar, por exemplo, os sambaquis no litoral brasileiro formados há 3.000 anos e contribuir com isso a “desestereotipar” a imagem dos povos indígenas que moravam lá antes da colonização europeia e divulgar esse conhecimento por meio de um videogame. A arqueologia também pode analisar o lixo deixado numa noite de carnaval para definir padrões atuais de comportamento e consumo. O que define a natureza de um estudo arqueológico não é a distância no tempo, é o foco na materialidade. Por outro lado, a arqueologia pode atuar com metodologias das ciências humanas e sociais, mas também com ferramentas das ciências exatas ou naturais. Pode se interessar por explicar o passado, por problematizar o uso que fazemos do passado no presente, ou por tomar uma posição ativa e contribuir na construção de uma sociedade mais equilibrada e justa. Enfim, múltiplas frentes!”
Assim, foi perguntado sobre a diferença entre a arqueologia industrial e outros tipos de arqueologia ao qual Sanchiz nos informa que “uma das maiores diferenças entre a arqueologia industrial e as arqueologias dos passados mais distantes é a maior quantidade de fontes não materiais disponíveis (escritas, visuais ou orais). Perante essa diversidade e quantidade de fontes, a pesquisa arqueológica industrial se baseia, entre outros métodos, na leitura cruzada no espaço físico de todos os dados disponíveis. Isso gera interpretações mais contrastadas e completas, pois permite verificar a informação contida nos registros “não objetivos” e ainda completá-la com aquilo que nunca foi registrado mas deixou um rastro material. De toda forma, como o prof. Funari nos recorda, o papel da arqueologia histórica (onde arqueologia industrial se enquadra) não é apenas completar ou corrigir as fontes escritas, mas construir narrativas alternativas baseadas nos vestígios materiais.”
Em relação à sua pesquisa, ele comenta que:
“A maior parte do meu trabalho tem se relacionado com indústrias do século XX. Ou seja, indústrias que, na maioria dos casos, tinham uma forte dependência das ferrovias tanto para se abastecer de matérias primas quanto para distribuir sua produção. Dessa forma, as ferrovias sempre estiveram presentes nas minhas pesquisas. Porém, a partir de 2013 se converteram numa das minhas principais áreas de atuação.”
Relata que se uniu ao projeto Memoria Ferroviária “ao interesse do prof. Oliveira em somar a arqueologia ao projeto; e ao apoio da UNESP e da FAPESP”. E quando perguntado sobre a participação dele no projeto, comenta que:
“Participar no MF tem sido muito rico e instigante para mim. Sempre tentei interagir no maior número possível de áreas, sobretudo durante o tempo que morei no Brasil, o que me permitiu aprender muito. No entanto, acho que minha contribuição mais original está relacionada com a inclusão da arqueologia no MF. De um lado, nos sistemas metodológicos de registro, análise e interpretação da materialidade do mundo ferroviário. Do outro, na incorporação do olhar arqueológico nas discussões multidisciplinares e na caracterização do vestígio físico como documento.”
Por ele ter experiência de pesquisa em diferentes países, perguntamos sobre o potencial do Brasil como campo fértil para Arqueologia industrial, ao qual ele nos disse que “no Brasil os processos de industrialização são relativamente tardios, especialmente quando comparados com outros países industrializados da Europa ou da América do Norte. Isso quer dizer que os vestígios da industrialização brasileira são em geral mais recentes, o que frequentemente se traduz em tecnologias mais modernas, escalas maiores e em melhores estados de conservação. Alguns espaços foram abandonados há pouco tempo, enquanto outros continuam ativos.
Por outro lado, no Brasil, pelo menos na parte que eu conheço, muitas vezes é possível achar nos espaços produtivos abandonados as maquinarias e equipamentos que funcionaram neles, coisa que em outros países (na Espanha, por exemplo) é pouco frequente. Isso enriquece muito o valor dos complexos como sítios arqueológicos e permite uma leitura tecnológica, evolutiva e funcional muito mais completa.
Finalmente, sobre o tema ele ressalta que “apesar dos esforços de várias pessoas e instituições, os acervos escritos e visuais da indústria brasileira são maltratados e um volume muito importante de documentação tem se perdido ou está em processo de se perder. Perante essa situação toda, o Brasil é um campo especialmente fértil para a arqueologia industrial, pois os documentos materiais (os vestígios) às vezes se conservam melhor do que os escritos ou visuais. Porém, os vestígios materiais também se encontram em risco e muitos sofrem alterações e perdas graves e rápidas. É por isso que o registro tem que ser uma atividade prioritária da arqueologia industrial brasileira, agora e nos próximos anos.”
Sobre os desafios que a arqueologia poderia enfrentar em relação à pesquisa sobre ferrovias ele comenta que:
“Um dos maiores desafios da pesquisa arqueológica sobre ferrovias é a escala. A China, por exemplo, tem hoje quase 140.000 km de malha ferroviária, junto com um material rodante e infraestrutura (estações, oficinas, escritórios, etc.) que possibilitam a circulação de mais de 3,6 bilhões de passageiros e o transporte de 4,3 bilhões de toneladas cada ano (segundo dados do Boletim Anual de Estadísticas Ferroviárias para 2019). O registro e análise arqueológico disso tudo é, simplesmente, incomensurável. Por outro lado, em muitos países uma parte significativa da rede ferroviária e das estruturas relacionadas com ela é ainda operacional, o que dificulta as condições de acesso e pesquisa.”
E sobre a atuação do arqueólogo em ruinas ferroviárias no Brasil destaca que “No caso das ruínas ferroviárias brasileiras, o principal problema é, como disse, o fato de se encontrarem num processo de mudança muito rápido. Às vezes provocado pelo abandono e o consequente deterioro, espolio e desaparição. Outras, pela recuperação e transformação para novos usos, que mesmo sendo desejável implica uma alteração do “documento” original e, pelo tanto, perda de dados. O registro é, assim, prioritário e urgente. Usando uma metáfora muito popular em arqueologia, a ruína ferroviária é um livro do qual só temos uma cópia disponível. O que não for lido (e registrado) agora, pode ser impossível de conhecer depois.”
Entrevistado: Prof. Dr. Juan Manuel Cano Sanchiz
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