Nas aulas de história econômica, os professores geralmente explicam aos alunos que a ferrovia foi o principal protagonista da primeira globalização econômica. Isso ocorreu entre 1870 e 1913 e coincidiu com outros eventos econômicos e sociais que provocaram uma grande transformação no mundo contemporâneo, dentre os quais podemos destacar a expansão da segunda revolução tecnológica, a consolidação do liberalismo econômico, a introdução do padrão-ouro e o desenvolvimento de um estágio neocolonial agressivo na África e no Sudeste Asiático pela Europa.
A ferrovia teve um papel determinante em todas essas mudanças. A colocação de faixas à medida que a construção de novas linhas ferroviárias progredia simbolizava o triunfo da era da capital, exemplificado na mobilidade até então sem precedentes de dois dos fatores clássicos da atividade econômica: capital e trabalho. Assim, milhões de francos, libras, dólares ou marcos foram movidos de um continente para outro para financiar a construção das dezenas de milhares de quilômetros de ferrovia que foram construídas em poucos anos. Além disso, dezenas de milhares de trabalhadores, qualificados e menos qualificados, mudaram-se para cobrir a demanda pela construção dessas linhas ferroviárias e, posteriormente, pelas diversas operações e tarefas da operação ferroviária. Além disso, a melhoria desses meios de transporte terrestre e marítimo também envolveu a migração de centenas de milhares de trabalhadores, especialmente da Europa para a América.
Medido em quilômetros em operação, o crescimento foi espetacular em praticamente todos os cantos do mundo, embora a Europa e os Estados Unidos tenham assumido a construção de 70% das linhas ao longo do século XIX. Permanecendo no início do século XX, para que progressivamente o crescimento das redes ferroviárias no resto dos continentes acabasse equilibrando os registros dos países mais desenvolvidos. Assim, se em 1850 já haviam sido instalados 36.000 km na Europa e na América, no início do século XX já havia 800.000 km distribuídos em todos os continentes e em 1950 o máximo foi atingido com mais de 1,3 milhão de km (Gráfico 1) .
O negócio ferroviário era dominado por europeus e norte-americanos e serviu para recolonizar a América Latina e colonizar a África, Ásia e Oceania como um todo, com empresas ferroviárias instalando-se, em alguns casos, antes mesmo de haver estados totalmente configurados, o que permitia Essas empresas têm uma posição dominante em face da fragilidade institucional.
A ferrovia também simbolizava na época a chamada “expansão para o oeste”, essa é a colonização do interior continental que foi propiciada pela exploração da riqueza agrária, pecuária ou mineradora nesses territórios, para os quais a ferrovia era a rota de entrada e saída através da qual muitos países se tornaram economias de exportação. Entre muitos outros exemplos, a ferrovia foi o ator da união nos Estados Unidos, da conversão do café no Brasil, da exploração de grandes produções pecuárias argentinas e da consolidação do império britânico na África Oriental, por exemplo, com o ferrovia de penetração para o Lago Victoria.
Em outras palavras, era uma ferramenta essencial para a grande expansão econômica do mundo ocidental, impondo suas condições muitas vezes de maneira abusiva. Mas também foi um elemento determinante da inovação tecnológica, organizacional e social. Não apenas a locomotiva a vapor foi um exemplo de progresso tecnológico, mas uma infinidade de atividades associadas à exploração ferroviária, como o aço das pontes, a melhoria do telégrafo, a introdução de eletricidade nas oficinas e as inovações arquitetônicas. Ferroviário, um espelho da indubitável modernidade.
Nas empresas ferroviárias, também nasceram grandes corporações industriais, que organizaram suas empresas através de departamentos e aplicaram economias de escala para melhorar seus resultados econômicos de acordo com o modelo desenvolvido pelas empresas ferroviárias norte-americanas e depois exportadas para o resto do mundo.
A relevância da ferrovia na extensão do movimento trabalhista e a transformação social a ela associada também foram especialmente significativas, possibilitando uma transmissão mais rápida de idéias e a consolidação da consciência de classe. Os ferroviários estavam em todos esses processos e enfrentaram muitas greves e conflitos, mas também personificaram o conceito de aristocracia operária, um termo de cunhagem feliz, o que explica a diversidade da classe trabalhadora. Em muitos casos, essas ferrovias estavam localizadas em bairros ou cidades promovidos pelas próprias empresas, onde era realizado um controle paternalista dos funcionários e de suas famílias. Lá, ele experimentou novas formas de planejamento urbano e o modelo da cidade-jardim amadureceu. Hoje existem centenas de centros populacionais que tiveram origem nas ferrovias: Atbara, Bereket, Changchun, Colón, Crewe, Entroncamento, Huambo, Nairóbi, Novosibirsk, Paranapiacaba, Peterborough, Pullman, Swindon, Tergnier e Venta de Baños, entre muitos outros.
A se ver, Domingo Cuéllar, «Railway Towns: A Long-Term Global Perspective», Journal of History of Science and Technology 12 (2018): 132-53.
Domingo Cuéllar (Grupo RENFE e Universidad Rey Juan Carlos)
Como citar
CUÉLLAR, Domingo. A era das ferrovias e da globalização econômica. Projeto Memória Ferroviária, 2020. Disponível em: https://memoriaferroviaria.rosana.unesp.br/?p=3744
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