O tema comunidade e patrimônio contempla alguns contextos interessantes de se compreender e de discutir. Discursos conhecidos como tradicionais amplamente abordados em normativas e diretrizes de preservação e trato patrimonial permitem reflexões. A princípio, como aponta Cordeiro (2011) a base para emergir discussões e posteriormente práticas de preservação do Patrimônio Cultural se deu num panorama de 2ª Guerra Mundial, haja vista a destruição dos elementos materiais como fábricas, indústrias, prédios históricos, etc. ocasionada pelos bombardeios.
Por esse cenário é intensificada a preocupação em manter o patrimônio cultural mundial nos lugares acometidos com guerras e também no mundo pós-guerra. Surgem então documentos chamados de “Cartas Patrimoniais”, que possuem diretrizes para se preservar o patrimônio. A característica material que é descrita como principal na fila de preservação, nesse contexto, indica a não participação da comunidade em assuntos patrimoniais.
A Carta de Veneza (ICOMOS, 1964), analogamente, pondera o preservacionismo apoiado nos critérios históricos, estéticos e arquitetônicos direcionados por um conjunto de especialistas que compreendem o patrimônio de modo distinto da comunidade. Ao longo dos anos outros documentos foram criados tangenciando discussões de preservação patrimonial.
Percebe-se a evolução teórica ao inserir a pertinência da participação e entendimento da relação da comunidade nos bens protegidos (Declaração de Amsterdam – Conselho da Europa, 1975 –; Carta de Washington (ICOMOS, 1987), contudo, o foco de orientação dessas cartas não é enfatizar a relação da comunidade e o patrimônio como assunto essencial e/ou principal à preservação.
Diferentemente das cartas anteriormente utilizadas nas práticas de gerenciamento patrimonial, a Carta de Burra (ICOMOS-Austrália, 1999) e Princípios de la Valleta (ICOMOS, 2011) intensificam a abrangência comunitária como essencial ao tratar de normativas e orientações patrimoniais. Essa evolução de uma teoria mais participativa é notória, mas será que na prática de gestão os mesmos princípios são aplicados?
Pesquisas de campo aplicadas pelas autoras e por outros membros do Projeto Memória Ferroviária em patrimônios industriais ferroviários nas cidades de Campinas, Valinhos e Vinhedo permitiram uma análise de que as ações práticas costumam destoar da teoria, pois, a participação integrada não recebe a relevância necessária.
Os entrevistados foram moradores dessas cidades, mais especificamente, do entorno do patrimônio, em sua maioria se manifestaram insatisfeitos com a atual gestão do patrimônio. As maiores queixas relatadas estão relacionadas a atual gestão do local e o não aproveitamento dos espaços, de modo a respeitar a memória e interesse da comunidade, cujo bem protegido está inserido. Por serem pessoas do entorno e que, majoritariamente, tinham relação com o local ficou perceptível por meio das falas dos entrevistados que possuem memórias e identidade com o local, e também boas propostas para os usos em tempos atuais.
Ademais, pelas falas deles conseguimos perceber a carência nestes locais em inserir os moradores do entorno nas iniciativas, conhecimentos e ações de planejamento patrimonial. A não participação dos indivíduos, para a maioria dos entrevistados não era por falta de interesse, mas justamente por não os inserir às práticas de gestão.
Os relatos possibilitaram a equipe a chegar na conclusão de que as práticas de participação da comunidade em iniciativas de gestão do patrimônio são quase nulas, de forma que não seguem de fato a teoria das cartas patrimoniais mais recentes (Carta de Burra, ICOMOS-Austrália, 2013, exemplarmente), que estimulam e direcionam à ações participativas considerando, também, a comunidade do entorno ao bem. Isto é, a importância que se dá para população e comunidade só acontece nos discursos, pois na prática a realidade é outra.
Sabemos que a gestão de um patrimônio de forma que respeite e atenda interesses mútuos não é algo fácil e não possui um manual de como ser feito, porque cada local possui sua originalidade. Contudo, o que enfatizamos é a necessidade de inserir e ouvir a comunidade na qual o patrimônio está estabelecido, porque, afinal, a constituição dele se deu através de pessoas e suas relações socioculturais e é por meio dessas associações entre indivíduos que construíram o que se entende como patrimônio. Para além da valoração histórica do bem patrimonial, reconhecemos o seu valor social e que por esse valor as pessoas atribuem sentido e importância ao patrimônio que merecem ser compreendidas.
Referências
CORDEIRO, José Manuel Lopes. Desindustrialização e salvaguarda do patrimônio industrial: problema ou oportunidade? Oculum Ensaios: Revista de arquitetura e urbanismo, n. 13, p. 154–165, 2011. Disponível em: <http://periodicos.puccampinas.edu.br/seer/index.php/oculum/article/view/147>. Acesso em: 16 jun. 2020.
ICOMOS. Carta de Burra. Austrália. 2013. Disponível em: <https://www.icomos.org/en/resources/charters-and-texts>. Acesso em: 16 jun. 2020.
ICOMOS. Princípios de La Valletta para a Salvaguarda e Gestão de Cidades e Conjuntos Urbanos Históricos. Paris. Novembro de 2011. Disponível em: <https://www.icomos.org/en/resources/charters-and-texts>. Acesso em: 16 jun. 2020.
ICOMOS-TICCIH. Princípios de Dublin. 28 de novembro de 2011. Disponível em: <https://ticcihbrasil.com.br/cartas/os-principios-de-dublin/>. Acesso em: 16 jun.2020.
ICOMOS. Carta de Veneza. Veneza. 1964. Disponível em: <https://www.icomos.org/en/resources/charters-and-texts>. Acesso em: 16 jun. 2020.
TICCIH. Carta de Nizhny Tagil. 17 de julho de 2003. Disponível em: <https://ticcihbrasil.com.br/cartas/carta-de-nizhny-tagil-sobre-o-patrimonio-industrial/>. Acesso em: 16 jun..2020.
Brenda Letícia Lichewiski dos Santos
Como Citar
COSTA, A. A da; SANTOS, B. L. L dos. Relação entre comunidade e o patrimônio: o discurso e a prática. Projeto Memória Ferroviaria, 2020. Disponível em: https://memoriaferroviaria.rosana.unesp.br/?p=3837
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