Recentemente o projeto Memória Ferroviária recebeu a doação de cerca de 250 documentos ferroviários, vindos de acervo particular. Os documentos são diversos: desenhos técnicos (como plantas da antiga oficina da Companhia Mogiana e vistas de um tender inglês), manuais de locomotivas, contratos de trabalho, relatórios, a maioria do século XX e de empresas variadas.
O doador foi o senhor José Paulo Moura, que nos concedeu uma breve entrevista para contar um pouco sobre sua vida e sobre como conseguiu esses documentos.
Para acessar os documentos doados, basta consultar a biblioteca digital do Memória Ferroviária na plataforma Zotero.
Confira abaixo a entrevista na íntegra.
Memória Ferroviária – Conte um pouco sobre sua vida: cidade em que nasceu, profissão que escolheu, como foi seu primeiro contato com as ferrovias…
José Paulo Moura – Sou nascido e criado em Itapetininga, cidade no interior aqui de São Paulo. Morava com meus avós maternos próximos a linha férrea da antiga Sorocabana e sempre ouvia os trens passando, além de algumas idas até a estação e pátio ferroviário. Porém, nunca imaginei que um dia iria ser ferroviário; além do que na família não tinha ninguém atuando nessa área. Após me formar Tecnólogo na Fatec em Sorocaba tive a oportunidade de emprego através de processo seletivo em 1978 na FEPASA onde passei a trabalhar.
MF – O senhor é ex-ferroviário. Conte um pouco sobre sua experiência.
JPM – Iniciei a minha vida profissional atuando nas dependências da Oficina de Manutenção de Locomotiva em Jundiaí, na Coordenadoria Técnica que tinha três áreas distintas: desenhistas, controle de qualidade e normativa.
Comecei na área de qualidade que basicamente tinha por função verificar se os serviços executados nas locomotivas diesel e componentes mecânicos em manutenção estavam em perfeitas condições. Depois fui para área normativa que elaborava as normas técnicas de manutenção dos componentes das locomotivas baseados nas instruções técnicas fornecida pelo fabricante das locomotivas.
Em 1982 fui para as Oficinas de Manutenção de Locomotivas de Campinas onde completei o curso de engenharia e atuei em diversas áreas como, por exemplo, na Divisão de Programação e Controle que elaborava e controlava o programa de manutenção periódicas das locomotivas diesel junto à oficina e depósito, relação de materiais e serviços necessários para que as diversas área da oficina executassem as manutenções das locomotivas e de seus componentes, controle da análise de óleo lubrificante.
Atuei em diversas outras funções. Por exemplo: manutenção predial e equipamentos da oficina, manutenção de equipamentos auxiliares (guindaste rodo/ferroviários, torno de rodas, etc…).
Porém, a maior parte foi na área mecânica atuando junto com os encarregados das diversas áreas de manutenção dos componentes das locomotivas diesel para a perfeita execução dos serviços com aplicação correta dos devidos materiais/serviços dentro dos prazos necessários para atender as locomotivas em revisão periódicas ou eventuais na oficina e ou depósitos.
Também tive a experiência de passar pela privatização da empresa que teve início com a transição para a RFFSA e em 1999 o leilão vencido pela FERROBAN que pouco anos depois passou a compor a holding Brasil Ferrovias sendo que em 2006 foi incorporada pela ALL.
Em 2006 com a transferência de todas as atividades para Curitiba (sede da ALL) as operações em Campinas foram encerradas com a dispensa generalizada dos funcionários, inclusive a minha.
Logo tive a oportunidade de trabalhar de 2007 a 2015 na iniciativa privada, também na manutenção de locomotivas diesel, em Hortolandia na empresa MGE que também passou por processo de aquisição pelo grupo Progress Rail (braço ferroviário da Caterpillar) que montou uma fábrica de locomotivas EMD em Tres Lagoas /MG concorrendo com a GE em Contagem/MG.
Depois, por mais de 2 anos, permaneci como consultor freelancer prestando serviços para empresas que atuam na área ferroviária.
Durante o período de 1978 até 2006 que atuei na Oficina de Locomotiva de Jundiaí e depois em Campinas, os trabalhos por mais que fossem exigentes, todos os funcionários (independentes das funções e cargos que exerciam) tinham respeito um pelos outros e pelas chefias, criando um ambiente extremamente salutar com a convivência diária agradável e um bom desempenho profissional de todos.
MF – O seu acervo contém documentos de todos os tipos como desenhos técnicos, contratos de trabalho, manuais e até um bilhete de trem. Como o senhor conseguiu esses documentos ou como foi o processo de criação desse acervo particular?
JPM – Basicamente alguns dos itens foram guardados por simples curiosidade ou zelo de minha parte e outros como da Mogiana, etc.. foram resgatados do abandono com ida para sucata/lixo, pois infelizmente após a privatização o pensamento era que os ferroviários viviam de passado e que objetos como por exemplo livros, desenhos e todo tipo de documento e até mesmo mesas, cadeiras, telefone, ventiladores, etc.. não tinham aplicação/serventia. Literalmente deveriam ser descartados. Sendo que na época da FEPASA também ocorreu esse tipo de postura, porém, em menor intensidade.
O pessoal que veio com a privatização, digamos, não teve “o bom senso” em preservar através de doação ou outros meios os itens que consideravam “inúteis”.
Refiro ao que presencie nas dependências da Oficina de Locomotivas de Campinas; não sei se isso também ocorreu em outras localidades e qual foi a intensidade principalmente como por exemplo os arquivos centrais da FEPASA que ficavam nas dependências da estação Júlio Prestes e da Barra Funda, sem citar outras oficinas como Jundiaí, Rio Claro e Sorocaba e depósitos em geral.
Face ao interesse pela preservação e por iniciativa própria, comecei a manter e conservar alguns itens que fui encontrando jogado e abandonado como sucata/lixo ao longo do tempo, sem estar lesando o patrimônio da empresa.
MF – Em 2020 o senhor procurou o grupo Memória Ferroviária para fazer a doação dos documentos. Como o senhor conheceu o grupo e quais suas expectativas quanto a esta doação? Como o senhor gostaria de ver estes documentos sendo utilizados?
JPM – Desde a época que encerrei as atividades junto às empresas ferroviárias, nunca deixei de estar verificando via internet as entidades de preservação ferroviária para conhecer o seu trabalho e como poderia estar colaborando para tal.
Tenho ex-colegas ferroviários trabalhando na ABPF; contato com pessoal de preservação em Sorocaba e Ribeirão Preto; sempre que possível vou a eventos, feiras, exposições, palestras, congressos ferroviários – que infelizmente hoje tudo está praticamente paralisado devido ao momento que passamos.
Nessas pesquisas tive o prazer de contatar vocês através do Sr. Eduardo Romero que me recebeu em algumas visitas onde tive a oportunidade de mostrar parte dos itens que disponho e que foi cedido.
Hoje a sensação que tenho é a dificuldade de ter acesso livre on-line de arquivos como, por exemplo, os existentes no Arquivo Histórico Municipal, Biblioteca Pública Municipal, Museu da Imagem e do Som de Campinas, Centro de Ciências Letras e Artes, Centro de Memória da Universidade Estadual de Campinas, Museu da Cia Paulista e de inúmeros outros órgãos inclusive estaduais pois parece que não temos esses arquivos digitalizados e somente consultados presencialmente.
Espero que esse material fique de livre e fácil acesso a quem tiver interesse em simplesmente consultar ao utilizá-los na elaboração de algum trabalho acadêmico ou coisa semelhante.
A equipe do projeto Memória Ferroviária agradece a gentil doação do sr. José Paulo Moura.
Se você também tem um acervo particular e quer compartilhar com a gente, nos envie uma lista com um breve descritivo dos itens através do email: <projetomemoriaferroviaria@gmail.com>
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